Pilatos interpretado por Domingos Tourinho |
A produção teatral, que há
26 anos estimula uma discussão sobre a história de Cristo, apresenta uma
cenografia bastante simples e surpreende por evocar não apenas personagens
presentes na versão tradicionalmente conhecida da via crucis mas também
personagens fictícios. Escrita e dirigida por Tácito Borralho e encenada pela Companhia
Oficina de Teatro (COTEATRO), a peça elegeu como pontos de partida trechos e
adaptações do Evangelho de São Mateus e Evangelhos Apócrifos, dos Cantares de
Salomão, Salmos e Provérbios, além de narrativas da obra “Jesus, o
Filho do Homem”, de Kahlil Gibran.
Em cada ato, a terrível
angústia e o desespero de Pilatos ante a dúvida da sentença proferida se
aprofundam. Os antagonistas da narrativa já não são mais o inimigo e Cristo,
mas as diversas histórias que existiram ou provavelmente existiram em torno
da vida de Jesus. Na tentação, é incluída a mulher, representação de um símbolo
sexual e, portanto, uma das tentações de Cristo, que, apesar de seu caráter divino, viveu
como homem. Um elemento fictício e bastante dramático é a presença de mulheres que choram por seus filhos e se posicionam contra o messias.
Essa ênfase em personagens
fictícios seduziu apreciadores, como a turista Teresa de Jesus Rios, que
declarou ter se surpreendido em conhecer a mãe de Judas Iscariotes: "Foi
muito bom, pois foi muito moderno, alegre, diferente do que costumeiramente é
feito", elogiou.
Cristo
negro, jovem e despido
Ao longo dos anos, foi construída,
no imaginário ocidental, a figura de um Jesus Cristo de Nazaré de pele clara e
santo, a ponto de fugir plenamente aos prazeres terrenos. Segundo Borralho, o
fato de o Cristo ser negro foi mera coincidência, pois ele estava à procura de um
ator jovem e de voz que denotasse a adolescência. Porém, a apresentação de um
cristo negro sugeriu a discussão sobre o negro na
sociedade e sua presença na história do cristianismo, que, quase sempre, é
deixada de lado nos espetáculos.
Na percepção do estudante
Márcio Cutrim, Cristo negro foi um dos principais elementos: “Eles
colocam Jesus na figura de um negro porque o negro é sempre excluído da
sociedade”.
Ainda sob os efeitos da
Jornada Mundial da Juventude, a “Paixão Segundo Nós” traz um jovem no papel do
redentor, revelando o Cristo que está entre os homens fazendo bonança. O
período em que se criou o espetáculo também influenciou na composição do papel: há 26 anos vivia-se o momento do rock e da juventude “rock in roll”, logo
Jesus tinha que apresentar essa essência. Surgiu, assim, o Cristo Jovem.
Fugindo totalmente do
tradicional, ao optar por um messias despido, a Coteatro inseriu um elemento
bastante díspar e que impactou o público. Cristo sem roupas revela as
fragilidades de um Deus que viveu como homem, que sentiu como homem, mas que,
historicamente, tem essa condição negligenciada. Ao se deparar com o salvador
da humanidade, tendo seu corpo erguido, o público logo revela o espanto,
espanto de ver Cristo nu. O que seria a simples continuidade fatídica de uma
história cujo que final todos conhecem transforma-se em um conto novo. Borralho conta que, na concepção do espetáculo, o nu tinha que
estar presente, pois no momento em que as vestes de Jesus foram rasgadas, seu corpo ficou totalmente exposto: “Jesus não foi crucificado de tanguinha ou
de saiote, primeiro que na época eles não usavam. Então por uma questão de
falso moralismo, as crucificações são com aqueles saiotes. Segundo, porque a
gente quer trazer o despir inteiro. Ele
é homem, é pessoa, e quem vai ser sacrificado tem que estar por inteiro”.
Cristo crucificado e a
ressurreição
Cena da Paixão |
Trabalhando com as
simbologias da paixão, em a "Paixão Segundo Nós", Cristo não foi crucificado. Tal
ato foi representado pelo alçar da terra ao céu e pela nova descida à terra. Após a
retirada do corpo de Cristo da cruz, um cortejo o conduz por dentro do teatro,
aproximando o público desse momento grandioso e muito aguardado.
O espetáculo reconstruiu a ressurreição: a glória pela volta à
vida de Jesus foi representada pela alegria, em um musical cheio de vida e chamativo (não apenas pelo flayer com a letra
entregue na entrada do teatro). Ao descer do palco, os atores colocaram-se ao
mesmo nível dos espectadores e os conduziram à saída de maneira lúdica. A
ressurreição abandonou aquele simples sentimento de volta à vida e incorporou uma essência que parece
inexistir nas concepções mais conservadoras.
Gabriel Freire, um dos
espectadores, conta sua percepção: “A
Bíblia traz sempre a mesma visão do Cristo, dos discípulos, e aqui traz várias
visões. Nem todo mundo gostava de Jesus. Além de desmistificar algumas coisas
da Bíblia, da igreja, faz a gente se entreter com a história, e a gente acaba
sabendo mais sobre o assunto de uma maneira fascinante”.
O também estudante Marcos
Martins fala de sua experiência com "Paixão Segundo Nós": “Faz com que nós paremos para pensar e nos transportemos para a época
que aconteceu. Eles trazem o fato antigo e transformam no moderno para que nós
nos encaixemos e voltemos ao passado. Achei muito boa visão”.
Escrito por: Maurício de Paula, da Redação Foca Aí
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